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Além da Crítica: Por uma Teoria Crítica “Habermaussiana”, por Frédéric Vandenberghe

Blog do Sociofilo

Seção Cartografias da Crítica

Debate Por, Contra ou Além da (Teoria) Crítica

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Por Frédéric Vandenberghe

Edição e Adaptação de André Magnelli &  Alberto Luis Cordeiro de Farias

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O que se propõe neste position paper é uma crítica teórica da teoria crítica – desta forma, uma metacrítica. Busco ir contra a corrente de um “novo consenso heterodoxo” que passou a dominar as ciências sociais desde os anos 1990. Estou pensando aqui em todas estas composições de Bourdieu com Fanon, Foucault com Said, Derrida com Laclau ou Adorno com Butler que se praticam nos chamados “Estudos” (de gênero, da ciência, do pós-colonialismo, etc.). Ao se recusar a esclarecer metateoricamente suas tomadas de posição teóricas, esta nova ortodoxia incorre em erros análogos àqueles que ocorreram com a teoria crítica da Escola de Frankfurt. As afirmações mais pessimistas da teoria crítica, que veem as sociedades industrial-capitalistas como constituídas por estruturas materiais de dominação que sobrepujam e reprimem o poder causal das estruturas ideais, conduzindo ao diagnóstico de reificação e de alienação total (cf. verbete Reificação), devem ser contraditas em seus fundamentos. A teoria crítica só chega a essa conclusão desolada porque se abstém de conectar apropriadamente a estrutura à agência e a agência à cultura, o que a torna “hipercrítica”. Isto vale tanto para a tradição germânica (weberiano-marxista) da Escola de Frankfurt, quanto para a tradição francesa (durkheimiano-marxista) do estruturalismo e do pós-estruturalismo. Ao invés de tentar uma radicalização da teoria crítica e, assim, perpetuar a negatividade que caracteriza o gênero, esboçarei, contra ela, os contornos metateóricos de uma teoria geral e generosa que esteja largamente inspirada no Ensaio sobre a Dádiva de Mauss.

Hegemonia e ocaso da (teoria) crítica: hipercrítica e messianismo

Um espectro assombra a teoria social. Com o colapso da filosofia marxista nos anos 1980, um colapso comparável ao do idealismo absoluto de Hegel ocorrido há 150 anos antes, a teoria social alternou, aparentemente, entre hipercrítica e messianismo. Sem o proletariado, entretanto, o marxismo está preso em um double bind: por um lado, sua crítica ao neoliberalismo confirma continuamente o diagnóstico sombrio do capitalismo e  renova sua denúncia das patologias sociais (alienação, reificação, falsa consciência, etc.), levando a uma radicalização da crítica, que é precisamente o que chamamos de “hipercrítica”; por outro lado, com sua busca frenética por um substituto do sujeito revolucionário (mulheres, imigrantes, os subalternos, populações indígenas, etc.) e suas interpretações messiânicas dos novos movimentos sociais (o Movimento de Justiça Global, a Primavera Árabe, o Occupy, o Passe Livre, etc.), sua negação do sistema se torna bastante indeterminada. Consequentemente, a negação da negação não é concreta, pois permanece abstrata e espectral, para não dizer acadêmica.

É bastante irônico que, devido à falta de alternativas funcionais genuínas ao capitalismo, a oposição ao sistema mundial tenha recuado agora para as margens do sistema científico e tenha achado seu suporte mais forte dentro da esquerda acadêmica. Enquanto que o mundo está se movendo amplamente para a direita, a academia tem se movido para a esquerda. A teoria crítica (no sentido ecumênico do termo), que inclui a “velha escola” do marxismo, como Wallerstein, Harvey e Badiou, os neo-frankfurtianos, como Honneth, Benhabib e Boltanski, os anarco-comunistas, como Negri, Agamben e Rancière, os pós-estruturalistas, como Laclau, Butler e Spivak, os subalternos, pós- e descolonialistas, como Guha, Stuart Hall e Mignolo, tem se tornado agora o gênero dominante dentro da filosofia política e teoria social.

Dentro das humanidades e ciências sociais, a crítica têm se tornado efetivamente hegemônica. Isso é excelente, na medida em que me diz respeito, pois compartilhamos as mesmas ideologias e esperanças. Mas me perguntarei se já não passou o tempo de passar da crítica à reconstrução. Na medida em que não intencionamos menosprezar as contribuições da teoria crítica e continuamos a nos beneficiar dos seus mordazes diagnósticos da presente conjuntura, confessamos que nos tornamos crescentemente enfastiados pela “ciência melancólica” e sua litania das denúncias hipercríticas (Vandenberghe, 2014: 1-99). Por que pintar preto sobre preto, se você pode usar uma paleta completa de cores? Podemos destravar a porta da ‘crosta de aço’ da modernidade e abrir uma janela em suas prisões de desespero para deixar entrar alguma luz e ar fresco? Não há realmente nenhuma alternativa dentro da teoria crítica à mistura fina dos durkheimiano-marxismos que vieram a ser conhecidos como pós-estruturalistas, assim como aos weberiano-marxismos da Escola de Frankfurt? É possível introduzir uma nova voz, um diferente tom e outros afetos no debate? Podemos mudar a estrutura de sensibilidade que se expressa na teoria crítica, distanciando-nos da impotência e raiva, do medo e esperança, do desespero e negação? Podemos trazer de volta à teoria as paixões alegres de Spinoza (amor, paixão, gratidão) e manter as paixões tristes em suspenso (raiva, rancor e desespero)?

Nossa resposta a todas estas questões é “Sim”. Não porque temos todas as respostas, mas sim porque o fechamento do sistema não leva a lugar algum. A não ser que se abandone as pressuposições metafísicas da teoria crítica. A adição de violência simbólica e governamentalidade a ela somente reforça teoricamente o desamparo do dominado. Qual é a linha de fuga do pós-estruturalismo se o sujeito e sua capacidade transformadora de reflexividade são evacuados desde o início? Se o sujeito é posto pelo poder, e não o inverso, o estruturalismo não é enfraquecido, ao contrário: ele é reforçado e estendido para dentro da alma e do corpo do dominado. Se se adiciona Foucault e Deleuze a Adorno e Horkheimer, não se resolve o problema, mas sim se dissolve o sujeito.

O destino do marxismo e as ambiguidades da (teoria) crítica

É interessante realmente observar que o que produz a unidade subterrânea e não assumida dos diferentes discursos e escolas de pensamento aqui mencionados – postcolonial, subaltern e gender studies, teorias do cuidado ou do reconhecimento – é sua relação com a tradição marxista, raramente anunciada ou pensada, mas bastante complexa. Porém, trata-se de um marxismo que nem sempre é fácil de ser identificado, porque se apresenta sob formas ao mesmo tempo difratadas, invertidas, reformadas e deformadas. Quatro características desta relação com o legado do marxismo são particularmente importantes: duas que o estendem e outras duas que o revertem.

1. Estes diferentes discursos se diferenciam e se opõem segundo a escolha do sujeito coletivo chamado a desempenhar o mesmo papel que o proletariado no marxismo clássico: o de um sujeito ao mesmo tempo alienado, reificado, explorado, mas um sujeito que ao se libertar, libertará toda a humanidade. Segundo as escolas, são chamados a assumir este papel: as mulheres ou as sexualidades reprimidas nos gender studies; os subalternos, os humildes, as camadas sociais arcaicas nos subaltern studies; os colonizados, os ex-escravos ou os imigrantes nos postcolonial studies; o conjunto de todos aqueles que são mal, pouco ou nada reconhecidos pelas teorias do reconhecimento; os trabalhadores (trabalhadoras) do cuidado, mulheres e imigrantes, segundo os teóricos do cuidado etc.

2. Esses mesmos discursos são herdeiros da crítica marxista, forçando a desconstrução, a historicização, a desessencialização, a desnaturalização de todas as categorias sociais instituídas. A ideia básica é que tudo que existe em sociedade é “construído” e, logo, deve ser desconstruído. E que essa desconstrução é, de certa forma, um fim em si própria. É aqui onde muitos desconstrucionistas contemporâneos surgem como formas de radicalização da crítica marxista radical. Mas, uma crítica e uma negatividade que já não acenam em direção a qualquer positividade ou qualquer possível reconciliação.

3. Porque, após o colapso e a autorrefutação dos sistemas comunistas, não se propõe mais uma saída positiva à crítica e à desconstrução, nem se evocam os amanhãs reconciliados que viriam resgatar toda a miséria passada da humanidade e inaugurar uma era de paz, prosperidade e harmonia universal. Daí o tom em grande parte desesperançado e niilista de muitas dessas perspectivas, que encontram a sua alegria na luta em si, e não a partir da perspectiva da vitória. Em se tratando do reconhecimento, quem, de fato, seria capaz de reconhecer verdadeiramente aqueles que lutam pelo seu reconhecimento, se tudo o que existe deve se “dissolver no ar”, e se não pode nem deve existir nenhum provedor legítimo de reconhecimento, nenhum “reconhecedor” supremo? Subsiste nesses discursos uma dimensão messiânica, mas trata-se de um messianismo sem Messias e sem terra prometida.

4. Em todo caso, porém, trata-se de lutas pelo reconhecimento ou de reconhecimento, e é aqui que a inversão feita em relação ao marxismo ortodoxo é mais impressionante. O que conferia ao conceito de proletário sua homogeneidade de princípio e sua capacidade de simbolizar e reunir todas as lutas sociais, é que o conceito de operário incluía a perspectiva do “próximo” em uma luta pelo ter, todos aqueles que lutam pela melhora de sua condição material. Os novos sujeitos trazidos à luz pelos grandes discursos contemporâneos lutam, primeiramente, para ser reconhecidos. Para ser, e ser reconhecidos como existentes tais que por ter, embora, naturalmente, entre ser e ter todas as inversões dialéticas sejam possíveis. Retrospectivamente, parece claro que as lutas propriamente económicas do passado foram apenas lutas pelo reconhecimento da dignidade dos explorados, e, prospectivamente, que as lutas pelo reconhecimento que não se traduzissem em algum ganho material obteriam apenas vitórias ilusórias, ilusões de ótica.

Se existe um desafio hoje para o pensamento crítico, ele consiste no seguinte: como e sobre que bases podemos definir na ciência (e na filosofia) social um paradigma alternativo àquele do homo economicus, que é a raiz da ciência econômica e que concorre à ‘omnimercantilização’ do mundo, legitimando-a com antecedência?

Uma primeira condição para isso é realizar uma avaliação reflexiva serena das forças e das fraquezas do marxismo sob suas várias formas, de suas contribuições e de seus paradoxos. Instrumento incomparável da crítica social, o marxismo afigura-se contaminado por seu componente messiânico que o leva a uma depreciação radical de qualquer forma possível do presente aliada a uma superestimação fantasmática de um passado e de um futuro hipotéticos e distantes (o comunismo primitivo ou final). É esta junção explosiva de pessimismo e otimismo radical que forma a matriz das tensões contraditórias que polarizam todo o campo dos diversos marxismos. De todos os discursos possíveis sobre a modernidade e a história, o marxismo é, com efeito, ao mesmo tempo o mais economicista e o mais antieconomicista, o mais utilitarista e o mais antiutilitarista, o mais individualista e o mais anti-individualista, o mais científico e mais anticientífico, o mais libertário e o mais ditatorial, e assim por diante. E ainda, por estas razões, o mais materialista e o mais antimaterialista.

Tal reconstrução da teoria crítica por meio de uma reavaliação reflexiva da tradição marxista, superando ao mesmo tempo as tentações do hipercriticismo e do economicismo, pode ser feita, no meu entender, por meio de uma teoria social reconstrutiva “habermaussiana”

Para Além da (Teoria) Crítica: Por uma Teoria Crítica “Habermaussiana”

A fim de não repetir o que foi dito antes e também melhor pelos amigos e colegas do Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais (M.A.U.S.S.) [1], tentarei algo diferente. Trabalhando no nível das pressuposições gerais da teoria social (Alexander, 1987-1988), proporei uma teoria idealista da ação que esboce as propriedades generativas da cultura e a conceba como um poder causal que motiva as pessoas a agir de uma certa maneira dando-lhes razões para fazê-lo. No curso do argumento, trago a hermenêutica para a dianteira, propondo um diálogo tripartite não somente entre antiutilitarismo e hermenêutica, mas também entre ambos e o realismo crítico. A intuição que guia esta aproximação é dupla: para trabalhar a teoria do simbólico de Mauss dentro da teoria da ação, é necessário desarticulá-la do estruturalismo de Lévi-Strauss e reconectá-la à hermenêutica fenomenológica; e para garantir que a hermenêutica não irá divagar na desconstrução e permanecerá firmemente comprometida com o projeto de reconstrução, é necessário enxertá-la no realismo crítico. Unido à hermenêutica fenomenológica, o antiutilitarismo é transformado desta forma a partir de dentro numa antropologia filosófica; desancorado do materialismo, o realismo crítico se torna idealista, ao mesmo tempo que a hermenêutica se torna realista. Para provocar a discussão, diria até que o que proponho aqui é substituir o materialismo pré-histórico pelo idealismo histórico.

Uma Teoria Culturalista da Emancipação

A conexão indivíduo-sociedade só pode ser resolvida com sucesso se a cultura for introduzida como o mediador simbólico que regula por dentro as ações individuais e coletivas, permitindo, assim, tanto a reprodução quanto a transformação da sociedade. Se, ao contrário disso, a cultura for reduzida a um epifenômeno das estruturas materiais nos indivíduos (psicologia cognitiva) ou na sociedade (materialismo histórico), a dimensão simbólica da ação, graças à qual os indivíduos e os grupos são integrados à sociedade, desaparece; com isso, a ação social é reduzida ao comportamento instrumental-estratégico, ao utilitarismo, que está voltado ao imperativo sistêmico da adaptação.

Uma teoria crítica não pode contentar-se com a denúncia do utilitarismo. Ela deve não somente investigar estruturas de dominação, mas também indicar possibilidades de emancipação. Como forma de evitar tal redução da ação social ao utilitarismo e à adaptação sistêmica, privando-a da liberdade e tomando-a como envolta de uma onipresente dominação, é necessário que a cultura seja explicitamente inserida na análise como o mediador. Do nosso ponto de vista metateórico, portanto, a tese hipercrítica sobre o predomínio das estruturas materiais sobre as estruturas ideais deve se inverter: se a teoria crítica, tal como o individualismo metodológico, desemboca em um universo reificado no qual estruturas materiais determinam a ação a partir do exterior, isso ocorreu porque ela concebeu a ação de modo excessivamente restrito, reduzindo-a à ação instrumental ou estratégica e excluindo os ideais, normas e valores que orientam e dão significado à ação, devendo-se, ao contrário, conceituar a cultura como uma ordem emergente relativamente autônoma que, somente assim, permite liberdade relativa à ação social.

As sociedades modernas podem ser individualistas, mas, se não se assume que os indivíduos compartilham significados, normas e valores básicos, não se pode propriamente responder à questão das questões que todo teórico social que se respeite tem de resolver: como a sociedade é possível? Como um monte de indivíduos atomizados se transforma em um todo organizado? Como os indivíduos podem coordenar suas ações e agirem conjuntamente? Com Hegel, Durkheim, Parsons e vários outros, assumo que Tocqueville (1961, II, 20) estava basicamente certo: “sem ideias comuns, não há ação comum, e, na ausência de ação comum, os homens ainda existem, mas não em um corpo social”. Ainda que as sociedades modernas neguem ideologicamente princípios holistas, eles permanecem ativos na prática e continuam a regular e motivar indivíduos que estabelecem, eles mesmos, a síntese social.

Ao dizer que os indivíduos estão conectados uns aos outros pela mediação da cultura (o espírito objetivo de Hegel, a conscience collective de Durkheim, as normas gerais e valores vinculantes de Parsons), não pretendo afirmar, como a feliz garota Pollyanna, que estruturas materiais não impingem sobre o comportamento ou que os indivíduos jamais sejam movidos por interesses, poder e sexo. Ao contrário, é precisamente porque o utilitarismo forma o horizonte axiológico do presente que se torna tão importante descortinar novas paisagens e afirmar, apesar de tudo, a presença do Espírito como um terceiro elemento (para além do material e do indivíduo) que interconecta os indivíduos em um koinon kosmon, tornando possível a ação em comum.

Com sua noção de sociedade como um arranjo bem ordenado de indivíduos socializados, a sociologia implica um projeto normativo. De fato, a sociologia não é apenas uma ciência. Ela dá continuidade à tradição da filosofia moral e política mediante a pesquisa empírica (Chanial, 2011; Vandenberghe, 2013). A sociedade não é apenas um objeto de conhecimento; desde o início, ela também é concebida como um projeto moral e político, projeto que busca demonstrar empiricamente que a integração de indivíduos em um todo é trabalho e realização dos próprios indivíduos. [2] Eles fazem a sociedade, como Marx disse celebremente em O Dezoito Brumário, mas não em condições de sua livre escolha. O projeto científico-normativo da sociologia é duplo: apesar de tudo, tornar os indivíduos conscientes daquilo que os mantêm juntos; e, através da conscientização, contribuir para o advento e realização da sociedade de indivíduos.

Não obstante a ocasional nostalgia pelas comunidades tradicionais, a sociologia não se opõe, de modo algum, ao projeto da modernidade. Como Hegel, ela inscreve o projeto da autonomia individual no seu objeto, subscrevendo o valor da liberdade, mas apenas na medida em que a liberdade de cada um seja uma condição para a autorrealização de todos “em um projeto comum” (Bhaskar, 1994: 141-160) [3]. Seu individualismo é, portanto, condicional e dirigido ao outro; trata-se de um individualismo moral que concebe o indivíduo não como um átomo, mas como parte e parcela de algo mais abrangente que transcende os interesses individuais e os integra através da ação coletiva em um projeto comum.

Tendo em vista esta ambição sociológica, que é a um só tempo cognitiva, moral e política, buscamos realizar, agora, um diálogo triádico entre antropologia humanista, hermenêutica crítica e o antiutilitarismo de Mauss e MAUSS, tendo em vista construir, por meio de uma teórica reconstrutiva da prática transformativa, uma metacrítica da teoria crítica. Entendemos, portanto, por metacrítica uma crítica “habermaussiana” (!) das pressuposições metateóricas da teoria crítica de estilo frankfurtiano, em que, conjugando Habermas e Mauss, se insiste na importância do simbolismo em dois sentidos: para o conceito de ação social, mas também, e sobretudo, para a revelação da realidade como realidade humana.

Caso isso não seja feito, reproduzir-se-á na sociologia, de forma transposta, as mesmas aporias características da filosofia moderna, que contrapuseram empirismo e racionalismo. Tal como lá, aqui indivíduo e sociedade não se confrontam tal como parte e todo, mas sim sob a forma alienada de res cogitans e res extensa. E tal como lá, a solução de tal aporia deve ser realizada por meio de uma antropologia filosófica que parte da concepção de natureza humana como animal symbolicus. E, a respeito disso, consideramos que a definição cassireana deve ter um toque final maussiano: o humano é um animal symbolicus reciprocus.

Antes de tudo, é preciso assumir, com Parsons, que, na teoria social, tudo depende do conceito de ação. Além disso, ainda seguindo o sociólogo americano, deve-se assumir uma posição voluntarista de ação social, em contraposição à utilitarista, que está presente no individualismo metodológico, e ao “antiutilitarismo negativo” das teorias hipercríticas. O voluntarismo, expresso sob a forma de um leve exagero do poder transformador da agência humana, constitui uma contraofensiva voltada à superação da unidimensionalidade tanto de uma teoria da escolha racional, que faz uma opção (pouco) realista pela descrição dos atores como estrategistas em concorrência por recursos escassos, quanto, sobretudo, a uma teoria crítica da sociedade, que se fixa sobre a denúncia (não-alienada) das onipresentes estruturas alienantes de dominação e opressão. Como se vê, o poder transformador do agente (poder1, entendido, com Giddens, como a “capacidade de agir de outro modo” que os agentes possuem em virtude de serem humanos) é pressuposto e, no entanto, ao mesmo tempo negado, por uma teoria hipercrítica da sociedade que acentua os poderes de dominação e opressão (poder2, compreendido, com Bhaskar, como “relações senhor-escravo generalizadas”).

Por sua vez, como já foi dito, a ênfase voluntarista sobre o poder transformador somente é possível caso se formule uma teoria da ação a partir de uma tomada de posição metateórica que seja, a um só tempo, holista, coletivista e emergentista. Para que se evite o determinismo próprio às reduções materialistas individualistas (individualismo metodológico) e coletivistas (materialismo histórico), deve-se construir a teoria social a partir de uma teoria da cultura que pressuponha a primazia da ação simbólica (cognitiva, normativa e expressiva). Esta tomada de posição metateórica, feita de modo a evitar que a teoria crítica seja uma lamentação continuamente ensaiada sobre a alienação e a reificação, nos permite sair, por meio de uma metacrítica da teoria crítica, do antiutilitarismo negativo para o antiutilitarismo positivo (Caillé, 2000: 41-44).

O anti-utililitarismo positivo

Temos que desenvolver um esboço da teoria da cultura que deve fundamentar tal metacrítica, por meio de um diálogo entre a fenomenologia hermenêutica, a antropologia filosófica, a antropologia do dom de Mauss e a hermenêutica crítica de Habermas. Na dádiva, ou em quaisquer outras atividades similarmente orientadas para o outro e animadas pelo espírito da generosidade que mantém a sociedade em movimento, como o diálogo, a comunicação e o reconhecimento, o antiutilitarismo positivo descobre um dos principais motivos e motores da vida social – “uma das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades” (Mauss, 1950: 148). O antiutilitarismo positivo permitirá elaborar uma axiologia alternativa que mostre que os indivíduos continuam a orientar-se por fins superiores e a moldar a sociedade de acordo com eles. Ele oferece essencialmente uma alternativa a visões da vida social que privilegiam a axiomática dos interesses econômicos (“comerciar, barganhar e trocar”), da luta política (a “vontade de poder”) e da conquista sexual (a “sobrevivência do mais apto”) sobre qualquer outra motivação irredutível ao autointeresse. Diferentemente da economia neoclássica e de seus aliados reducionistas (psicologia evolucionária, sociobiologia e neurologia cognitiva), o antiutilitarismo positivo descobre as fundações antropológicas da vida social na abertura para o outro e na transcendência de si pela reciprocidade. O antiutilitarismo positivo não ignora, de modo algum, a predominância dos interesses na vida contemporânea; em vez disso, tal como os pais fundadores da antropologia e da sociologia, ele combate e transcende os limites estreitos da utilidade marginal para investigar o que mantém a sociedade unida e o que a separa.

A cultura deve ser concebida, ela própria, como um poder causal. Composta de representações simbólicas da realidade e invocações normativas de princípios e valores, bem como de expressões artísticas que transfiguram a realidade, a cultura é a totalidade de formas simbólicas que revelam o mundo como significativo e regulam as ações de indivíduos e coletividades a partir de dentro, ao pré-estruturarem seu universo e pré-selecionarem cursos possíveis de ação. A insistência sobre a cultura como a totalidade de formas simbólicas que, sempre e inevitavelmente, mediam a relação entre os seres humanos e seu Umwelt, revelando a natureza, a sociedade e a personalidade como um ambiente humano, é essencial a qualquer teoria da ação que se recuse a reduzir a ação à conduta instrumental e estratégica determinada “a partir de fora” pelas coações alienantes de um mundo (quase) desumano.

Se a mediação pelas formas simbólicas for descontada, a ação humana torna-se apenas mera reação a condições materiais. Supondo-se que o fim esteja dado – e no seu mais básico ele coincide com a mera sobrevivência e conservação -, os meios podem ser racionalmente determinados por um simples cálculo de otimização. Na ausência de deliberação racional sobre os próprios fins, pouca escolha resta. No limite, há apenas um caminho correto para o fim. Sem referência à cultura como uma precondição formativa que o guie desde dentro, o comportamento, não importa o quão inteligente ou instrumentalmente racional, não é ação de modo algum; ele constitui uma adaptação ao ambiente material diretamente determinada por este. A cultura não apenas fabrica mundos; em virtude do fato de que transpõe o ator a um mundo diferente daquele existente, ela também rompe com mundos e torna os atores conscientes quanto a alternativas. É verdade que a hermenêutica, com sua ênfase sobre transmissão cultural e tradição, é uma força bastante conservadora. Mas, do mesmo modo que não se deve assumir a priori que a cultura sempre funciona como uma forma de violência simbólica, não se deve afirmar muito rapidamente que ela é sempre reprodutora.

Para romper o círculo infernal da reprodução social e passar de uma teoria da dominação para uma teoria da emancipação, o essencial é, como já foi dito, não reduzir a dimensão ideal à dimensão material e, assim, não reduzir a cultura à ideologia ou à violência simbólica, devendo-se concebê-la como possuindo uma autonomia relativa.

Nesse ponto, podemos trazer Marx de volta à discussão e reformular sua noção de ideologia como uma representação simbólica errônea da realidade que é socialmente necessária e historicamente variável. Ao atar o conceito mais atentamente às representações simbólicas, a concepção da ideologia como reflexo e refração passivos da infraestrutura material pode ser superada. Assim como utopias, ideologias são forças ativas de construção de mundos. O poder causal da cultura como uma “estrutura estruturante” que representa (correta ou incorretamente) a realidade pressupõe, para ser ativado, a ação intencional de atores individuais ou coletivos. Entretanto, a conexão interna entre cultura e agência não transforma os atores em meros condutores do coletivo. Mesmo quando a cultura funciona como um fator que legitima a realidade através de uma distorção sistemática de sua representação e, assim, contribui para a reprodução da sociedade, ela forma e transforma os atores ao torná-los conscientes e reflexivos.

Pelo mero fato de que o simbolismo transfigura o dado, há sempre uma fenda entre a realidade e a sua representação. Ao oferecer concepções alternativas da realidade ou projetar nova luz sobre aquelas existentes, a cultura abre novas possibilidades entre as quais os atores podem, em princípio, escolher. Na prática, é claro, tal escolha não é sempre possível. Interesses materiais podem restringir a margem de ação, seja diretamente, ao tornar a ação demasiado custosa, seja indiretamente, por meio da pré-seleção cultural. Similarmente, os indivíduos podem ter a vontade, mas não a capacidade, para agir; podem ter a capacidade, mas não a vontade; ou ainda nem a capacidade nem a vontade para tanto. Em qualquer caso, os interesses materiais nunca determinam diretamente as práticas individuais ou coletivas.

A relação entre estrutura social e ação intencional é sempre, necessária e inevitavelmente, mediada pela cultura (Kögler, 1997). Situada entre a estrutura social e as práticas sociais, a cultura constitui uma mediação moldada pelas condições sociais (que impõem certa estrutura à cultura como forma simbólica que representa, bem ou mal, a realidade) e moldadora das práticas sociais (ao prover representações simbólicas da realidade nas quais os atores se baseiam para dar sentido a ela).

Aventuro-me a dizer que a diferença entre as concepções da cultura como reflexo e refração da estrutura social (tal qual em Marx e Durkheim), de um lado, e como totalidade de representações simbólicas da realidade que tornam a ação intencional e significativa possível (como em Dilthey e Weber), de outro, é determinada, em última instância, por distintas antropologias filosóficas. Humanistas se voltam à ação e à cultura, e observam como se pode fazer com que as estruturas se movam; anti-humanistas começam com a estrutura, e trilham um caminho descendente para a cultura e as práticas, de modo a observar como as últimas são movidas pela primeira.

Toda teoria social geral tem de encontrar sua própria articulação entre a estrutura social, a cultura e a agência. Com Marx, Bourdieu e Bhaskar, concebo a estrutura social, genericamente, como o sistema material de relações internas entre posições sociais que define uma formação societária; seguindo Durkheim, Mauss e Dilthey, defino a cultura não tanto como um sistema de relações entre ideias, mas como a totalidade de formas simbólicas que transformam o mundo em um mundo significativo, constituindo o difuso pano de fundo da ação intencional; com Habermas, Mauss e toda a tradição antiutilitarista, penso a ação humana não como um modo estratégico-instrumental de intervir sobre o mundo para modificá-lo ou adaptar-se a ele, mas, em primeiro lugar e antes de tudo, como um modo simbólico, comunicativo e cooperativo de ser no mundo com e para os outros , modo de ser inspirado por ideias e ideais humanistas, movido por sentimentos morais, dirigido por entusiasmo, generosidade e sociabilidade.

Uma renovação da teoria da alienação e da reificação: as distorções sistemáticas da comunicação e da dádiva

Preciso repetir aqui que meu sentimentalismo é sobretudo reflexivo, que estou plenamente consciente de que a sociedade como um todo não é um ashram e que o mundo está cada vez pior? Em vez de qualificar meu antiutilitarismo, prefiro retomar meu projeto de uma hermenêutica crítica e indicar como as estruturas sociais impactam a cultura e inibem a liberação das energias positivas e paixões alegres que dirigiriam normas e valores para sua realização. A dominância do utilitarismo na vida cotidiana interfere nas estruturas do mundo da vida por meio de uma pré-estruturação do ambiente cultural da ação, a qual acaba pervertendo as intenções dos atores. Tal pré-estruturação insidiosa das possibilidades de ação pode, inclusive, acontecer sem o conhecimento dos próprios atores que perseguem intencional e conscientemente seus cursos de vida nas situações práticas da vida cotidiana. Penso em toda a gama de ações sociais que, superficialmente, parecem ser atos de generoso e genuíno altruísmo, mas são, na verdade, simuladas ou mal compreendidas pelos próprios atores como instâncias reais de comunicação, cooperação e doação.

Em um pólo de pseudocomunicação, pseudocooperação e pseudodoação, encontramos as performances hábeis de administradores da impressão que fornecem seus serviços espirituais enquanto pretendem estar genuinamente preocupados com o bem-estar de outros. O comercialismo grosseiro de gurus sem escrúpulos da Nova Era, como Bhagwan Shree Rajneesh (vulgo Osho) e Da Free John (vulgo Adi Da), ou de revolucionários da Nova Esquerda que insistem em voar de primeira classe (como Marcuse, supostamente por conta do tamanho de suas pernas), são apenas os exemplos mais crus de má fé. No outro pólo de comunicação, cooperação e doação sistematicamente deformadas, deparamos com o autoengano de pessoas de boa fé que julgam estar realmente se comunicando, cooperando e doando quando, na verdade, são incapazes de fazê-lo. Em vez de ouvirem, elas falam; em vez de cooperarem com os outros, elas ordenam e comandam; em vez de darem, receberem e retribuírem a dádiva, elas tomam, recusam e rompem o círculo de reciprocidade que anima a sociabilidade e mantém a sociedade viva.

Com essa referência àqueles que, conscientemente ou não, vão contra o espírito da dádiva e sempre guardam mais do que contribuem, já reformulo a teoria da exploração de Marx em termos de uma teoria que funde a teoria da dádiva de Mauss com a teoria da comunicação sistematicamente deformada de Habermas (1971). Do ponto de vista de uma teoria maussiana que acentua a “troca justa”, enquanto passa ao largo da obsoleta teoria da mais-valia de Marx, a exploração não é nada além de uma situação social na qual a dádiva é sistematicamente distorcida em detrimento de uma dada classe e em benefício de outra: uma classe dominante sempre toma mais do que merece sem reciprocidade, enquanto a classe dominada dá mais sem obter retorno. Para justificar o desvio diante da famosa máxima – tal como formulada pelo lindo provérbio Maori: “Dá tanto quanto tomas, tudo estará muito bem” (Mauss, 1950: 265) -, a norma da reciprocidade pode ser refuncionalizada e transformada em uma ideologia que esconde e justifica a desigualdade da transação sob o véu benevolente da pseudodádiva, da pseudogenerosidade e da pseudocooperação. Para evitar a armadilha do moralismo, no entanto, uma teoria antiutilitária da dádiva não pode se permitir recair em uma “fisionômica social” (Adorno) que engrandeça casos particulares com vistas a encontrar a totalidade nos detalhes. Para se melhor compreender determinados casos de exploração, deve-se explicá-los pela referência sistemática à lógica social de dominação que caracteriza as sociedades de controle contemporâneas. Talvez uma revisita à teoria do “trabalho imaterial” de Negri possa avançar alguns passos em mostrar como o poder e o dinheiro, de modo sistemático, porém insidioso, colonizam as várias esferas da vida, subvertendo a lógica da reciprocidade em uma simulação de comunidade (como acontece em workshops espirituais, no treinamento profissional, no aconselhamento pastoral, na psicanálise clínica e, por último, mas não menos importante, nos reality shows da TV e as novelas da Globo).

Notas

[1] Ver a Revue du Mauss desde 1981 e, sobretudo, o trabalho de Alain Caillé – Teorie Anti-Utilitariste de L’Acion + La sociologia malgré tout. Fragments d’une théorie sociologique générale II.  Presses Universitaires de Nanterre, 2014

[2] Questionando a própria noção de sociedade como uma interconexão funcional entre indivíduos socializados em uma ordem normativa, François Dubet (2009: 7-47) não hesita em qualificar a sociologia como uma filosofia social liberal-comunitarista, para não dizer uma teologia da sociedade. Com a invenção da sociedade, os sociólogos tornam-se não apenas os fundadores de uma disciplina, mas também os sacerdotes de uma sociedade na qual acreditam e que querem trazer à existência.

[3] Em sua reconstrução normativa de uma teoria da justiça sob a forma de uma teoria da sociedade, Axel Honneth (2011) rastreia o emprego da ideia de liberdade na filosofia moderna (da liberdade negativa de Hobbes e Locke, passando pela liberdade reflexiva de Kant, Rawls e Habermas, até a liberdade social de Hegel e Marx). O que ele diz sobre a teoria crítica também vale para a sociologia: nenhuma ética social, nenhuma crítica da sociedade pode atualmente transcender o horizonte intelectual que veio à luz há duzentos anos pelo acoplamento de uma representação da justiça à ideia de autonomia (Honneth, 2011: 37).

Referências Bibliográficas

Alexander, J.C. 1982–1983. Theoretical Logic in Sociology, 4 vols. Berkeley, CA: University of California Press.

Bhaskar, R. 1994. Plato etc.: The Problems of Philosophy and their Resolution. London: Verso.

Caillé, A. 2000. Anthropologie du don. Paris: Desclée de Brouwer.

Chanial, P. 2011. La sociologie comme philosophie pholitique, et réciproquement. Paris: La Découverte.

Dubet, F. 2009. Le travail des sociétés. Paris: Seuil.

Habermas, J. 1971. Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik. In: Apel, K.O. (ed.), Hermeneutik und Ideologiekritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp. p. 120–159.

Honneth, A. 2011. Das Recht der Freiheit: Grundriβ einder demokratischen Sittlichkeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

Mauss, M. 1950. Essai sur le don. In : Sociologie et anthropologie. Paris: PUF. p. 143–279

Tocqueville, A. 1961. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard.

Vandenberghe 2013. A Sociologia como uma Filosofia Prática e Moral (e vice versa). Sociologias, Porto Alegre, ano 17, no 39, mai/ago 2015, p. 60-109.

_______. 2015. Cultura e agência: a visão de dentro. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, no 41, jan/abr 2016, p. 130-163.

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