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Capitalismo dependente: todos os passos de um conceito de Florestan Fernandes, por Antonio Brasil Jr.

Antonio Brasil Jr. reconstroi o conceito de capitalismo dependente de Florestan Fernandes de modo a conectar a noção da sociedade de classes e de subdesenvolvimento.

Blog do Sociofilo / BVPS

Seção Cartografias da Crítica

Constelação Teoria, Sociologia e Antropologia Críticas no Brasil e na América Latina

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 Antonio Brasil Jr. (IFCS-UFRJ) [1]

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Na primeira metade da década de 1960, o encontro dos termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento” se dava, nos textos de Florestan Fernandes, na chave da “irracionalidade”. Essa maneira de conectar os termos abria, sem dúvida, um campo alternativo de possibilidades históricas, já que ela sinalizava para uma repulsão mútua entre eles: caso operasse à eficácia máxima, a “sociedade de classes”, universalizando a “ordem social competitiva”, expurgaria o “subdesenvolvimento”. Essa forma contrafactual de encarar os termos dessa relação, que instaurava, ainda que de maneira tênue, um certo campo de possíveis, sai de cena com a introdução do construto “capitalismo dependente”.[2] A partir dessa introdução, que se dá em fins da década de 1960, o modo pelo qual o autor conecta esses termos muda: agora o encontro entre “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento” opera na chave da “racionalidade”, da “normalidade”, isto é, o sistema social assim conformado funcionaria estruturalmente a meia potência. É claro que neste aggiornamento está implicada a reiteração do processo de fechamento político da sociedade brasileira. No entanto, o desafio aqui é entender como o autor conseguiu, na organização interna de seus argumentos, dar conta dessa viravolta explicativa. Ao longo desta seção, mostrarei que é justamente o termo “capitalismo dependente” que permite ligar, através do adensamento histórico da análise, aqueles dois termos nesse novo registro. É como se ele formalizasse em nível mais abstrato uma série de elementos históricos contingentes — que destacaremos abaixo — que teriam possibilitado esta conjugação crônica entre “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”.

A introdução do construto “capitalismo dependente” implicou, para Fernandes, uma verdadeira “rotação ótica” (termo dele) em pelo menos três planos da análise sociológica. Em primeiro lugar, na necessidade de articular, de modo constitutivo, elementos “internos” e “externos” às sociedades, especialmente, mas não exclusivamente, no âmbito dos dinamismos sócioeconômicos — articulação que também levaria a uma imbricação entre elementos “arcaicos” e “modernos”. Num segundo plano, na requalificação da atuação limitada da burguesia na chave da “racionalidade possível” diante das condições do “capitalismo dependente”. O seu confinamento a interesses egoístas e de curto prazo não seria uma simples “irracionalidade” ou uma resistência “sociopática” à mudança, mas uma forma de se ajustar a um “capitalismo difícil”. Por fim, na caracterização do caráter inextricavelmente “autocrático” da transformação capitalista implicada pelo “capitalismo dependente”, que se associaria não com a correção, mas com o agravamento da monopolização da renda, do prestígio e do poder político. Noutras palavras, o “capitalismo dependente” não conduziria à universalização da “ordem social competitiva”.

Assim, esse construto permitiu que Fernandes conferisse maior unidade e elegância conceitual às suas análises sobre o desenvolvimento. Afinal, os problemas levantados acima não estavam de todo ausentes em seus textos anteriores. O que muda é que agora eles são lidos à luz de um único princípio explicativo, que absorve mas coloca noutro patamar as hipóteses da “demora cultural” e do “dilema social brasileiro”. Continuariam vigentes tanto os descompassos entre as diferentes partes da sociedade, quanto a inconsistência entre valores e práticas sociais; o que deixa de existir é a expectativa em relação às possibilidades de sua superação histórica nos marcos do “capitalismo dependente”. Além disso, esta nova forma de colocar as questões do desenvolvimento terminou por redefinir a própria noção de “sistema” empregada pelo autor, como teremos oportunidade de discutir mais à frente.

Passemos, pois, à análise do “capitalismo dependente” tal qual concebido por Florestan Fernandes. Embora a noção de “dependência” operasse em seus textos desde a década de 1950 (Limoeiro, 1996), ela só assume real importância explicativa a partir do artigo “Sociedade de classes e subdesenvolvimento”, escrito no final de 1967 para um seminário na Universidade de Münster, na Alemanha. No ano seguinte, esse artigo serviria de introdução ao livro de mesmo título, que também reunia textos anteriores mas ancorados na mesma problemática. Aliás, lidos em ordem cronológica, e não na ordem dos capítulos de Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1968), os textos desse livro nos permitem ver os contínuos reajustes na argumentação do autor, o que de saída retira qualquer princípio forte de unidade na sua composição.[3] Vejamos, pois, quais foram as principais inflexões em seus argumentos a partir desse artigo de 1967. Nessa reconstrução, seguiremos basicamente os argumentos de Fernandes expostos neste artigo, na introdução à segunda edição de Mudanças sociais no Brasil (1974) e em A revolução burguesa no Brasil (1975).

Em primeiro lugar, há uma maior sistematização na articulação dos elementos “internos” e “externos”. Na primeira página do texto aparece a seguinte afirmação: “é preciso notar que a sociedade nacional, que constitui o principal foco de referência deste trabalho [. . .], originou-se para a história moderna como parte da expansão do mundo ocidental” (Fernandes, 1975, p. 9, itálicos no original). Esta forma de colocar o problema não era propriamente uma novidade, haja vista a discussão de Caio Prado Jr. sobre o “sentido da colonização”.[4] Contudo, ela impõe a necessidade de articular num mesmo andamento explicativo as condições locais e globais, com vistas a se avaliar o peso dessa articulação para o dinamismo do sistema social. No caso do “capitalismo dependente”, essa articulação, mesmo que variável ao longo do tempo, apresentaria uma nota comum: ela implicaria a formação de uma economia “duplamente polarizada”, isto é, destinada a garantir a acumulação de capital tanto para as burguesias nacionais quanto para as burguesias dos países “hegemônicos”. Com essa “dupla polarização”, o dinamismo econômico “interno” sofreria uma considerável baixa de intensidade, já que parte do excedente econômico seria constantemente succionado para “fora”. Nesse diapasão, Fernandes chega mesmo a dizer que, nesses contextos, teria ocorrido uma completa inversão do “processo normal” de formação do capitalismo: em vez de contar com o suporte de uma “acumulação primitiva”, como havia formulado Marx, a revolução burguesa seria realizada a partir de condições muito mais adversas. Nos termos do autor,

O exemplo inglês evidencia que a apropriação colonial foi um dos fatores básicos da chamada acumulação originária de capital, ou, como se diria hoje, do desencadeamento e aceleração do “arranco econômico”. O exemplo quase total do “mundo subdesenvolvido” revela que os países a ele pertencentes se veem compelidos a realizar a revolução capitalista sob o impacto da perda constante (e por vezes crescente) de parte substancial do próprio excedente econômico, dinamizada além do mais como fator de intensificação da heteronomia econômica. Em um extremo, temos uma economia de mercado capitalista que crescia com o excedente econômico transferido ou pilhado de economias coloniais. No outro, deparamos com uma economia de mercado capitalista que, ao crescer, corre o risco de se tornar ainda mais dependente (Idem, 1975, pp. 24-5).

Mesmo que essa situação opere diminuindo a voltagem do crescimento econômico nos países periféricos, as suas burguesias não deixariam transformar continuamente essas sociedades no sentido da constituição de uma “sociedade de classes”. A sua nota específica residiria na ausência de autonomia, já que, sozinhas, elas não teriam força histórica suficiente para tal. As burguesias sob o “capitalismo dependente” não poderiam desencadear, a partir de si mesmas, “nem a revolução agrícola, nem a revolução urbano-industrial, nem a revolução nacional”, embora elas percorram “todas as etapas desses processos” (Idem, 1979, p. 55). Contudo, uma consequência decisiva dessa associação com as burguesias dos países de “capitalismo hegemônico” residiria na sua composição com estruturas socioeconômicas arcaicas, a outra face da moeda da baixa intensidade do baixo dinamismo econômico “interno”. Ou melhor: a própria conexão com os dinamismos “externos”, que garantia a incorporação do capitalismo ao nível das relações sociais “internas”, reforçaria, em vez de liquidar, o legado colonial.

[. . .] a influência externa, autenticamente revolucionária aos níveis estrutural e histórico na fase da desagregação do antigo sistema colonial, pois incorporava a economia interna diretamente ao mercado mundial e fixava os núcleos urbanos que iriam servir de fulcro ao crescimento de um mercado capitalista moderno, também pressupunha um feedback negativo. O comércio externo constituía o verdadeiro ponto de apoio seja para a manutenção seja para a ampliação de um esquema de exportação e importação que iria servir de eixo para a preservação, o desdobramento e a revitalização de estruturas econômicas, sociais e políticas de origem colonial (Idem, 1979, pp. 39-40).

Assim, longe de mero resíduo histórico, o “antigo regime” era reposto continuamente em virtude dessa dinâmica social “duplamente polarizada”. De acordo com Fernandes, esse padrão de desenvolvimento, muito mais que o aparecimento relativamente recente da “sociedade de classes”, é que explicaria o baixo rendimento da “ordem social competitiva” como princípio de organização social. Ela não se universalizaria por conta da “coexistência e concorrência do trabalho servil, do trabalho semilivre e do trabalho livre, provocadas pela coetaneidade de várias idades históricas distintas, de modos de produção pré-capitalistas e capitalistas” (Idem, 1979, p. 36). Não se trata, contudo, de uma mera reposição de visões “dualistas” à la Jacques Lambert em Os dois brasis. Esta articulação de elementos capitalistas e pré-capitalistas, o que conforma uma certa “dualidade”, não se encaminharia para a absorção do segundos a partir do primeiros — ela indicaria o próprio sentido geral do dinamismo do “capitalismo dependente”. Nesse passo, em espírito de revisão de algumas das formulações de Marx e Weber, Fernandes assinala que, nesse contexto, nem as forças produtivas se expandiriam até atingirem a sua eficácia-limite, nem o mercado operaria como agência exclusiva de classificação social. O sistema social não se “fecharia” em torno dos princípios organizatórios de uma sociedade moderna, combinando-se de maneira heteróclita com as estruturas herdadas da colônia.

A dinâmica histórica inerente ao “capitalismo dependente” não indicaria, portanto, um caminho em linha reta, mas em ziguezague. Fernandes usa uma imagem significativa para conferir expressão plástica a este processo: em vez do fluxo da mudança atuar como uma “torrente volumosa e impetuosa”, ele sugeria mais uma espécie “de afluente, que desaguava em um rio velho, sinuoso e lerdo” (Idem, 1979, p. 41). Haveria, a rigor, forças tanto “internas” quanto “externas” pressionando em sentidos contraditórios, ora a favor de uma maior diferenciação da “sociedade de classes”, ora na revitalização de elementos da “sociedade estamental e de castas”, cuja desagregação não se completaria inteiramente. Essa imbricação entre dinamismos “de dentro” e “de fora” estaria diretamente associada, portanto, à combinação de elementos “arcaicos” e “modernos”, tornando bastante complexo o quadro geral da mudança social:

Os movimentos que promoviam a preservação e o fortalecimento de relações, instituições e estruturas coloniais não eram, pura e simplesmente, antagônicos à modernização, ao crescimento do “setor novo” e à expansão interna do capitalismo comercial. Bem analisados, eles constituíam antes uma precondição para que tudo isso fosse possível [. . .]. O antagonismo à mudança, portanto, tem de ser interpretado com muito cuidado, porque ele faz parte da autodefesa do setor arcaico, que funcionava como fonte de alimentação indireta das transformações em curso e se beneficiava delas no nível menos visível da reorganização e concentração do poder. Doutro lado, os interesses investidos na modernização [. . .] não lutavam pelo controle do espaço ecológico, econômico, sociocultural e político incorporado às estruturas [. . .] de origem colonial (Idem, 1979, p. 40).

Essa reviravolta explicativa também rebate na própria forma pela qual Fernandes concebe a “racionalidade” dos atores sociais, em especial da burguesia “dependente”. O alcance limitado das transformações que ela promove não seria mais visto na simples chave do apego “irracional” ao statu quo ou de uma resistência “sociopática” à mudança. Seriam antes as condições particulares do “capitalismo dependente” que tornariam inevitavelmente estreito o seu horizonte de ação. Dentre elas, o autor assinala os efeitos da posição “heteronômica”: a burguesia “dependente” não poderia controlar todas as variáveis cruciais à sua ação já que “muita coisa depende (positiva e negativamente) do mercado externo e de suas variações conjunturais” (Idem, 1975, p. 73). Nesse sentido, o meio econômico “subdesenvolvido” não estaria em condições de oferecer “condições mínimas de previsibilidade” (Idem, 1975, p. 72), fazendo com que os atores projetassem o melhor de sua ação não para a expansão contínua dos negócios, mas para a sobrevivência imediata em condições de flutuação extrema. Daí, para o autor, a contaminação recíproca entre “negócio” e “aventura especulativa”, entre “cálculo capitalista” e “improvisação”: diante do circuito de indeterminação assim gerado, a burguesia necessariamente converteria “o imediatismo e a especulação imoderada em componentes essenciais do êxito econômico” (Idem, 1975, p. 76). Fernandes chama a atenção, portanto, para um tipo de “racionalidade” que não se volta à transformação do mundo — no caso, do “subdesenvolvimento” — mas à adequação a ele, uma espécie de “racionalidade adaptativa”. Assim, as burguesias “dependentes”, ao perseguirem unicamente os seus interesses econômicos, não estariam contribuindo uma efetiva “saturação” da “sociedade de classes” e da “ordem social competitiva”; antes, elas apenas estariam reforçando o estado geral de “subdesenvolvimento”. Daí a sua força e sua fraqueza na cena histórica:

A burguesia de uma sociedade capitalista subdesenvolvida concentra o melhor de suas energias, de seu talento e de sua capacidade criadora na luta por sobrevivência econômica. Apenas incidentalmente transcende este plano, projetando-se historicamente como uma classe que domina e modifica a estrutura ou o curso dos processos econômicos. [. . .] Assim, a economia capitalista subdesenvolvida engendra uma burguesia que é vítima de sua própria situação de classe. Ela possui poder para resguardar sua posição econômica e os privilégios dela decorrentes no cenário nacional. Mas é impotente noutras direções fundamentais, a tal ponto que induz e fomenta um crescimento econômico que a escraviza cada vez mais intensamente ao domínio dos núcleos hegemônicos externos (Idem, 1975, pp. 77-8).

Ao introduzir essa série de especificidades históricas ligadas à dinâmica do “capitalismo dependente”, Fernandes passa a articular os termos sociedade de classes e subdesenvolvimento na chave da “racionalidade”, e não mais dos ajustamentos “irracionais”, como vinha fazendo em seus textos anteriores. Essa inflexão representa, evidentemente, um agravamento no seu ceticismo quanto ao padrão de mudança social existente no Brasil, pois as limitações do principal agente da revolução burguesa não se deveriam à obnubilação tradicionalista geral, mas à “racionalidade possível” num contexto de capitalismo periférico. À luz dessa formulação mais geral, o autor passa a requalificar as deformações que o “capitalismo dependente” acarreta na “ordem social competitiva” como um traço estrutural e até mesmo esperado desse “estilo” de revolução burguesa. Não que a “ordem social competitiva” não tenha se expandido ao longo do processo; ela até teria possibilitado “alguma «circulação de elites»”, além de uma “intensa absorção dos elementos em ascensão social (nacionais ou estrangeiros)”. Contudo, esse crescimento quantitativo não teria alterado a qualidade da “ordem social competitiva”: ela continuaria a “favorecer unilateralmente os grupos e classes privilegiados”, que oscilariam entre “um e cinco por cento, raramente atingindo um quarto da população total” (Idem, 1979, p. 31). Noutras palavras, os benefícios do desenvolvimento não atingiram todos os grupos sociais, mas seriam monopolizados pelos grupos já previamente incorporados às posições estratégicas da ordem social.

Para Fernandes, uma “ordem social competitiva” que não se universaliza terminaria por se “esvaziar” enquanto fator histórico-social. Ao restringir a “eficácia da competição e do conflito na coordenação das relações de classe”, uma vez que estes processos funcionariam apenas na pequena órbita dos “mais iguais” (Idem, 1979, p. 37), ela acabaria tirando o fôlego dos processos de mudança estrutural necessários à sua “saturação” histórica. E, mais decisivo ainda, essa “ordem social competitiva” não teria força suficiente para neutralizar os efeitos negativos do “antigo regime” ao nível da orientação das condutas, que continuariam largamente informadas por um padrão antes “estamental” que efetivamente “democrático”. Nesse sentido, a “mentalidade mandonista, exclusivista e particularista das elites dominantes” (Idem, 1979, p. 35), em vez de expurgada, continuaria a se reproduzir no seio da nova ordem social. Daí que não só as formulações de Marx e Weber, mas também as de Durkheim — especialmente sua análise das formas de solidariedade no mundo moderno — teriam de ser revistas. Para Fernandes, a ideia de que a “sociedade de classes” produziria um vínculo social de tipo “igualitário”, amparado na “existência da pessoa como categoria psicológica, social e moral autônoma” (Idem, 1975, p. 43), não se sustentaria nessas condições histórico-sociais específicas. Podemos notar, portanto, que o autor não limita a explicação ao plano socioeconômico, embora ele seja uma componente muito importante em sua análise. Os efeitos do “capitalismo dependente” também se ramificariam nas formas de agir e na conformação da personalidade, replicando essa articulação entre o “arcaico” e o “moderno” no plano das relações sociais concretas.

Uma vez combinadas essas diferentes dimensões no andamento da análise, Fernandes tira todas as suas consequências para a explicação do tipo de transformação política exigida pelo “capitalismo dependente”. Apesar da relativa “debilidade” de sua burguesia no sentido de ultrapassar as condições de “subdesenvolvimento” — o que lhe retiraria qualquer “estatura heroica” —, ela não seria politicamente “fraca”. Em argumento contrário a Gunder Frank, o autor assinala que não seria o caso de uma “lúmpen-burguesia”, pois o esforço de “manter e fortalecer o poder burguês em condições tão adversas”, ainda que “através de artifícios cruéis e mesquinhos” (Idem, 1979, p. 56), sem dúvida constituiria um índice considerável de “força”. No entanto, para atingi-la, as burguesias “dependentes” precisariam de uma espécie de “excedente de poder”, já que elas se veriam às voltas de três tipos de pressões concorrentes:

1.o) as pressões internas dos setores marginalizados e das classes assalariadas; 2.o) as pressões externas vinculadas aos interesses das nações hegemônicas e à atuação da “comunidade internacional de negócios”; 3.o) as pressões de um Estado intervencionista, fortemente burocratizado e tecnocratizado, especialmente se as relações de classe fomentarem deslocamentos políticos no controle societário da maquinaria estatal (Idem, 1979, p. 28).

Nesse sentido, a fim de garantirem a sua sobrevivência, as burguesias “dependentes” usariam o Estado, por um lado, para abrir um “espaço político” minimamente autônomo que lhes permitisse “manter a associação com «os interesses externos» em condições de autodefesa dos «interesses privados nacionais»”. Por outro, o Estado igualmente serviria como “uma terrível arma de opressão e de repressão”, especialmente contra os “setores despossuídos, na maioria classificados negativamente em relação ao sistema de classes”. E, por fim, usariam o Estado contra ele mesmo, que deixaria de atender aos interesses da coletividade como um todo para se confinar aos limites estreitos, “egoísticos e particularistas” (Idem, 1979, p. 29), dos interesses das classes dominantes. Assim, as relações de poder no interior do “capitalismo dependente” engendrariam uma espécie de “gigantismo político” (Idem, 1979, p. 51) por parte da burguesia, que utilizaria esta posição privilegiada não para realizar uma revolução “democrática”, mas para a própria manutenção do “capitalismo dependente”, com toda a sorte de privilégios e iniquidades que ele acarreta. Por essa razão, Fernandes nomeia esse processo como um “modelo autocrático” de revolução burguesa, a rigor um tipo de transformação capitalista completamente esvaziado de pretensões “utópicas”. No caso brasileiro, esse sentido mais geral do processo histórico teria se revelado em toda sua extensão a partir do golpe de 1964. Com ele, diz o autor, “a dominação burguesa se revela como ela é: rígida, monolítica e autocrática, anulando ou suprimindo todo o espaço político que não sirva aos interesses econômicos, políticos e sociais das classes dominantes” (Idem, 1979, p. 32).

 Eis, portanto, o “ponto de chegada” de Fernandes em seu processo de “aclimatação” da “sociologia da modernização”. A suposta conexão universal entre desenvolvimento e democracia giraria em falso nas condições do “capitalismo dependente”, tal qual descritas por ele. Com esse construto, o autor logrou introduzir uma série de contingências históricas que explicariam o porquê da associação crônica entre “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, formalizando em nível teórico mais amplo a marcha recalcitrante da modernização em contextos periféricos. Isso posto, Fernandes não se limitou apenas a retificar o esquema interpretativo da “sociologia da modernização”; nesse registro, ela simplesmente não poderia dar conta dos processos histórico-sociais que se afastassem dos casos “clássicos” de revolução burguesa. Como a possibilidade de se replicar as formas “democrático-burguesas” de transformação capitalista teria saído de cena, a potência explicativa da “sociologia da modernização” se esvaziaria quase que inteiramente.[5] Sobre o “modelo autocrático” de revolução burguesa, o autor assinala:

Aí, a Revolução Burguesa combina — nem poderia deixar de fazê-lo — transformação capitalista e dominação burguesa. Todavia, essa combinação se processa em condições econômicas e histórico-sociais específicas, que excluem qualquer probabilidade de “repetição da história” ou de “desencadeamento automático” dos pré-requisitos do referido modelo democrático-burguês. Ao revés, o que se concretiza, embora com intensidade variável, é uma forte dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia; ou, usando-se uma notação sociológica positiva: uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia (Idem, 2008, p. 340).

A partir da introdução do construto “capitalismo dependente”, as instâncias de generalização mobilizadas por Fernandes também sofrem uma inflexão. Como visto, ainda que os processos histórico-sociais analisados pelo autor se refiram basicamente à sociedade brasileira, os resultados encontrados teriam significação heurística para além dela. Não seria o caso, contudo, como consta no prefácio da primeira edição de A sociologia numa era de revolução social (1963), de indicar as especificidades da “sociedade de classes” no Brasil como um índice das possíveis variações históricas desse tipo societário, alargando os casos previstos pelos modelos interpretativos dos sociólogos situados nos países centrais (Idem, 1976, pp. 19-20). Tampouco a sociedade brasileira seria um caso intermediário no que se refere à vigência e eficácia da “civilização ocidental”, tal como sugere em “A dinâmica da mudança sociocultural no Brasil” (1965). Agora, as particularidades da sociedade brasileira são colocadas noutro patamar explicativo, porque ela — ao lado do México — poderia ser considerada como “o tipo mais complexo de capitalismo dependente” (Idem, 1975, p. 49). Ou, noutros termos, porque aí “a dependência é mais profunda e diferenciada e o subdesenvolvimento é mais desenvolvido” (Idem, 1981, p. 115). Tomada como um “tipo extremo” do “capitalismo dependente”, a análise da sociedade brasileira ganharia um estatuto teórico mais elevado na medida em que nela estariam presentes “tanto os aspectos mais arcaicos quanto os aspectos mais modernos da estratificação social condicionada pelo capitalismo dependente” (Idem, 1975, p. 50). Daí que, à maneira de Marx sobre o caso inglês no século XIX, Fernandes tenha se referido ao caso brasileiro num registro equivalente: “o presente do Brasil contém o futuro de outros países, que pertençam à periferia do capitalismo mundial e não possam encaminhar-se diretamente para o socialismo” (Idem, 2006, p. 259).

Um corolário imediato dessa maneira de colocar o problema da generalização é que Fernandes acaba “quebrando” em dois o “tipo” da “sociedade de classes”. Não que esse tipo societário se apresentasse de modo inteiramente distinto nas condições do “capitalismo dependente”. Ele mesmo ressalva que o “regime de classes é o mesmo”, o que não invalidaria “conceitos, métodos e teorias acumulados previamente” (Idem, 1979, p. 25). Não por acaso Fernandes se voltou, criticamente, aos clássicos da disciplina — Marx, Weber e Durkheim — a fim de analisar a dinâmica do “capitalismo dependente” (Idem, 1975, pp. 26-48). Contudo, uma análise consequente deste “subtipo” da “sociedade de classes” teria de levar a sociologia a uma “verdadeira rotação ótica” (Idem, 1979, p. 25), com diversas consequências para a própria noção de “sistema” a ser empregada. Senão, vejamos.

A ideia de que se poderia explicar a dinâmica social pela noção de “sistema” teria rentabilidade analítica apenas para os casos de “capitalismo autônomo”. O autor é explícito nesse ponto:

Ao estudar o regime de classes em sociedades nacionais dotadas, ao mesmo tempo, de desenvolvimento capitalista autônomo e de posição hegemônica nas relações capitalistas internacionais, os cientistas sociais puderam operar, tanto descritiva quanto interpretativamente, com uma homogeneização máxima dos fatores propriamente estruturais e dinâmicos da diferenciação social; puderam concentrar a observação, a análise e a interpretação em casos extremos, considerados como sistema de uma perspectiva nacional, como se a economia, a sociedade e a cultura, sob o capitalismo, se determinassem apenas a partir de um núcleo interno em expansão; supuseram que os fatores causais e funcionais da transformação capitalista [. . .] atuam a partir de dentro [. . .] e variam, sempre, de um ponto de menor complexidade para outro de maior complexidade quanto ao grau de diferenciação das relações de classe (Ibidem).

À luz desta “rotação ótica”, a própria noção de “sistema” sai historicizada. Ela não se resumiria, para Fernandes, a uma simples ferramenta analítica à disposição dos sociólogos, mas formalizaria, em seus próprios pressupostos, uma experiência sócio-histórica determinada. Isso ocorre porque o “fechamento” que a noção de “sistema” requer não se realizaria nas condições do “capitalismo dependente”. Nem os fatores explicativos seriam homogêneos, haja vista a imbricação entre elementos “arcaicos” e “modernos”, nem a referência nacional seria suficiente, dada a articulação constitutiva entre fatores “internos” e “externos”. Ou seja: nem no plano temporal — passado/presente —, nem no plano espacial — interno/externo —, nem no plano organizatório — tradicional/moderno —, seria possível a demarcação de fronteiras nítidas: o “moderno” que emerge no “capitalismo dependente” simplesmente não se fecharia “sistemicamente”. Daí as dificuldades em sua interpretação, que necessitaria conjugar num mesmo movimento adensamento histórico e uma perspectiva de totalidade.[6] Nos termos de Fernandes,

Ao estudar o regime de classes em sociedades que se defrontam com o desenvolvimento capitalista induzido e controlado de fora, além disso sujeitas ao impacto negativo das debilidades resultantes de suas posições heteronômicas, os cientistas sociais têm de operar, tanto descritiva quanto interpretativamente, com uma heterogeneização máxima dos fatores propriamente estruturais da diferenciação social. Eles precisam adaptar seus ângulos de observação, de análise e de interpretação à natureza e à variedade de forças que intervêm, concretamente, na configuração e nos dinamismos do regime de classes das nações capitalistas heteronômicas: umas, procedentes das sociedades hegemônicas externas; outras, provenientes de tendências dominantes na evolução das estruturas internacionais de poder [. . .]; e outras, por fim, que nascem “a partir de dentro”, das próprias sociedades de classes dependentes e subdesenvolvidas [. . .]. Ou seja, os cientistas sociais perdem parte de seu arbítrio na abstração do caso nacional do amplo conjunto de forças, que operam simultaneamente e com potencialidades sociodinâmicas ao mesmo tempo tão variadas e contraditórias (Idem, 1979, pp. 26-7).

O construto “capitalismo dependente”, de Florestan Fernandes, introduz um princípio ordenador mais vigoroso que o “esquema de etapas” de Gino Germani. Apesar de propiciar um adensamento histórico da análise ao operar como elo entre os termos sociedade de classes e subdesenvolvimento, trata-se de uma “formalização” capaz de suportar uma maior variação empírica. Explico-me melhor: mesmo reconhecendo que as sociedades conformadas pelo “capitalismo dependente” pudessem apresentar, entre si, uma ampla gama de “flutuações históricas”, essas “flutuações” não seriam tão relevantes do ponto de vista explicativo. O que importaria à análise seria o sentido geral da transformação capitalista em países periféricos, sentido que poderia ser captado nas “sociedades de classes dependentes” mais complexas — caso, justamente, do Brasil. Em seus termos,

Em larga medida, a discussão funda-se em conhecimentos que possuo de países economicamente mais avançados, nos quais a dependência é mais profunda e diferenciada e o subdesenvolvimento é mais desenvolvido. Repetindo o que disse Marx do desenvolvimento capitalista na Inglaterra: esses países contêm a “constituição íntima” dos demais com maior clareza. Estudando-os, vemos melhor o que nos outros aparece embaçado. Se uns já estão no estágio da revolução industrial, e outros ainda se acham no da revolução comercial (nas condições em que ambas aparecem sob o capitalismo dependente), e se uns superaram a transição neocolonial e os outros ainda se debatem com muitos de seus problemas, isso é secundário (Idem, 1981, p. 115, itálicos nossos).

Esta decantação formal mais nítida presente nos textos de Fernandes, em contraste com os textos de Germani, ganha expressão “plástica”, por assim dizer, na noção de “circuito fechado” — que até dá título a um de seus livros. O fechamento da história divisado por aquela noção não diz respeito à ausência de transformações históricas; mas, antes, à reiteração de seu sentido antidemocrático (ou “autocrático”) ao longo da trajetória dos países de “capitalismo dependente”.

Mesmo assim, comparando-se a solução de Fernandes à teorização parsoniana, a distância é grande. Apesar de suas pretensões de generalização a partir do Brasil para os demais países da periferia capitalista, a sua construção teórica não permite nem minimizar nem descartar sem mais as contingências históricas envolvidas em cada caso. Como ficou claro em sua discussão na noção de “sistema”, o sociólogo, ao lidar com a realidade do “capitalismo dependente”, teria de reunir, num só golpe de vista, uma série de elementos heterogêneos, sob pena de perder fôlego explicativo. Processos históricos, arcaísmos repostos, dinâmica interna dinamizada por fatores externos: a necessidade de conjugar todos estes aspectos no andamento da análise imediatamente rouba quaisquer pretensões de uma “abstração” forte que poderia estar contida no construto “capitalismo dependente”. Ou, invertendo-se a perspectiva, podemos dizer que esse construto representa a “abstração” possível diante de uma matéria social totalmente arredia a ordenações fáceis.

Notas

[1] Este ensaio é um excerto do livro de BRASIL JÚNIOR, Antonio da Silveira . Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo: Hucitec; 2013. Págs. 263-268 (disponível integralmente na biblioteca virtual da Clacso: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140311045526/PassagensParaTeoriaSociologica.pdf).

[2] Como nos sugere José de Souza Martins (1998, p. 85, itálicos no original), “o interesse sociológico [. . .] pelo possível depende de uma circunstância social e política que não esteja marcada pelo fechamento autoritário, absoluto e irremediável das alternativas históricas”.

[3] Problema que também atinge centralmente a fatura de A revolução burguesa no Brasil (1975), cujas distâncias entre a primeira e a terceira parte do livro se devem justamente à introdução do termo “capitalismo dependente” como eixo explicativo.

[4] Bernardo Ricupero sugere a seguinte comparação entre as formulações de Caio Prado Jr. divisadas em Formação do Brasil contemporâneo (1942) a partir do “sentido da colonização” e o construto “capitalismo dependente”: “Em termos amplos, Florestan Fernandes se aproxima da linha de análise que, desde Caio Prado Jr., ressalta a ligação do Brasil com um quadro maior, em que o desenvolvimento do capitalismo como sistema mundial é o dado principal. [. . .] / A revolução burguesa no Brasil se distancia, entretanto, de Formação do Brasil contemporâneo: colônia na maior atenção que presta a fatores internos à sociedade brasileira” (Ricupero, 2007, p. 203).

[5] Em “Sociologia, modernização autônoma e revolução social”, escrito em 1970 mas publicado apenas três anos mais tarde em Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1973), Fernandes se posiciona de modo muito duro em relação às limitações explicativas da “sociologia da modernização”: “Nos países capitalistas hegemônicos, a Sociologia estuda a modernização de uma perspectiva muito abstrata e geral. É como se o sociólogo sucumbisse à necessidade de diluir a verdade, contentando-se com explicações aproximadas, em si mesmo mistificadoras. Do “tradicional” ao “moderno” — como se houvesse um motor na história, gerando nos “povos submetidos” os seus antípodas, os “povos conquistadores”. [. . .] Aos poucos ou rapidamente, o “tradicional” é vencido e o “moderno” se impõe, através de uma generosa generalização do progresso e, quem sabe, da última era das luzes. No entanto, a quem beneficia a modernização? Como ela se organiza a partir das nações que incorporam as outras em seus espaços econômicos, socioculturais e políticos? [. . .] Quando o sociólogo do “mundo desenvolvido” e naturalmente “modernizador” neutraliza tais variáveis, a sua explicação deixa de ter qualquer utilidade (teórica, empírica ou prática) (Idem, 1981, pp. 141-2).

[6] Este ponto foi muito bem colocado por Elide Rugai Bastos em seu texto sobre o “Pensamento social da escola sociológica paulista” (2002). Não se limitando apenas a Florestan Fernandes, mas discutindo um conjunto de trabalhos que compartilham de seu ponto de partido metodológico, a autora aponta: “a análise a partir da periferia permite indagar sobre os princípios que articulam o sistema” (p. 201, itálicos no original).

Referências bibliográficas

BASTOS, E. R. “Pensamento social da escola sociológica paulista”. In: MICELI, S. (org.). O que ler na ciência social brasileira. São Paulo: Ed. Sumaré-Anpocs, 2002.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar , 1975 [1968].

_______. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1960.

_______.  A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2006 [1975].

_______.  A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, 2.a ed.

_______.  Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, 3.a ed. [1973].

MARTINS, J. S. Florestan: sociologia e consciência social no Brasil. São Paulo: Edusp, 1998.

RICUPERO, B. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo. S. Paulo: Ed. 34, 2000.

_______. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2007.

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